A maior sedução de minha infância era o circo. Nos domingos, na Praça Carlos Gomes, com a trupe dos Irmãos Queirollo. Equilibristas, palhaços, acrobatas, malabaristas, trapezistas e cavalos carregando bailarinas. Todo mundo ria quando Queirollo puxava a corrente que prendia sua cachorrinha de pano, gritando bem alto:
– “Pula Violeta!”
A grande atração eram as faces brancas da maquiagem, a vestimenta negra (o fraque), a destreza das mãos e a cartola do mágico. Elas dançavam em retas e curvas, para cima e para baixo, enquanto os dedos puxavam do grande chapéu de veludo preto a variedade colorida de lenços, flores, bonecas e até mesmo coelhinhos agarrados pelas orelhas. Eu me perguntava: “Como é isso? Tanta coisa não cabe no chapéu”.
Essas imagens me vêm agora lendo o 3º volume da Poesia Reunida, de João Manuel Simões. Na imaginária e fluída percepção da Divina Comédia, Simões antevê a existência de uma Santíssima Trindade Poética apresentando “Virgílio: foi esse o Pai. / E Dante o Filho. / Entretanto, / depois deles sobressai/ Pessoa, O Espírito Santo.”
O poeta lembra a criança feliz com o soneto que abre o “inventário da infância”: “Trouxe da infância rosas e manhãs/ e tarde parecendo a vida inteira, /ribeiros, prados, pássaros, maçãs, /papagaios erguidos na ladeira, / a velha casa, e entre muitas vãs / aquarelas, a imagem verdadeira / do velho avô com suas puras cãs, / sentado, absorto, à sombra da figueira. / Trouxe da infância (de além-mar!) brinquedos, / trens, carrosséis, bonecos, instrumentos oníricos / Trouxe comigo caixas com segredos, / bolas, contos, piões, latins, inventos / de um tempo – que fui e sou – criança”. A palavra está na cartola do poeta. Rebuscada pelos dedos da mão direita ele desenha no ar com a mão esquerda os versos de “O menino que eu era / morreu há muito. / Assim, / acabou-se a quimera: /eu sou órfão de mim.”
“O mundo é uma escola, a vida é o circo”.
Marisa Monte (1967-). Cantora, uma das maiores artistas da música brasileira na atualidade.
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