“O senhor é o Doutor Dotti?” Pergunta desnecessária porque, aberta a porta bang bang, não se via outra pessoa no gabinete de 4 por 5 metros, o espaço do primeiro escritório (1961). Uma placa com meu nome e profissão estava afixada na parede externa do primeiro andar do edifício Azulay, na Alameda Dr Murici, esquina da Rua XV. Duas cadeiras no corredor funcionavam (às vezes) como sala de espera. O visitante apresentou-se. Lembro apenas o prenome: – “Coutinho”, pronunciado com desembaraço.
– “Sim, sou eu mesmo”. – “Ah! Eu já tinha ouvido falar muito bem do senhor. Me disseram que é um bom advogado”.
A lisonja pareceu-me simples cortesia. Vamos ao caso. Coutinho mostrou a intimação da Delegacia de Falsificações e Defraudações em Geral. Disse que fora obrigado, – “por carência mesmo doutor”, a pagar uma dívida com um cheque borracha. – “Meus irmãos de criação me tocaram pra rua no dia seguinte que a mãe morreu. Ela me pegou pra criar desde criança”.
Fomos andando até a delegacia, na Saldanha Marinho. Não havia inquérito. Coutinho falou com o credor e deu em troca do cheque uma promissória para trinta dias. O valor era bem maior que a dívida.
Caso resolvido. Na volta ele exagerou nos elogios e perguntou se eu atendia inventário. Doce palavra! A mãe de criação prometera incluí-lo no testamento. – Mas os miseráveis não me deixaram ver nada”. Disse que voltaria na semana para os detalhes e trazer – “pra começo” … A importância era tão grande que fez tremer minhas pernas. – “Quanto lhe devo pelo serviço de hoje doutor?” Ora! Ali estava um cliente que merecia honorário reduzidíssimo: meio salário mínimo. Agradeceu, tirou uma folha do talonário, preencheu e assinou o cheque. – Até a semana doutor”.
Há muitos dias não aparecia ninguém. Fui quase correndo ao Bamerindus, esquina da Ébano Pereira com a XV. Entreguei o cheque para uma funcionária no balcão. Ela olhou para mim, olhou para o cheque e para o homem que parecia ser seu chefe. E disse as palavras que jamais esquecerei: – “Seu Lauro, mais um do Coutinho!”.
O inventário em Ponta Grossa era simples miragem.
“A mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer”
Mário Quintana (1906-1994). Poeta, tradutor e jornalista.