O Ahú de Baixo era um ponto de encontro de italianos e de poloneses, de nascimento ou de tradição, e que viram nos céus de Curitiba o dirigível Hindenburg que cruzara o Oceano Atlântico para fazer a propaganda nazista. Eram os anos trinta e eles viviam, apesar da distância, a ameaça de uma nova guerra mundial e os efeitos da tragédia que poderiam chegar até aqui. As casas eram de madeira, as ruas de barro; havia flores nos caminhos, a ternura de minha mãe, a bicicleta de meu pai e a minha irmã, bem criança, tomava banho em uma bacia menor do que a minha. Foi nesse tempo e lugar que nasci, na Rua Marechal Hermes, há quinhentos metros do altar feito em 1980 para o Papa rezar a missa. Ali mesmo, onde está o Palácio Iguaçu.
Às vezes, nossos pais nos levavam a visitar parentes. A Tia Nena (irmã dele) era rica e morava na Rua Riachuelo, então muito percorrida e por onde, durante as noites de carnaval, desfilavam os corsos. Minha irmã e eu ficamos sentadinhos. Em certo momento, com sede, perguntei: “Mamãe, onde é o barril?”. Afinal, como iria saber o que era água encanada?
Também nunca vou esquecer, no primeiro dia de aula, no Grupo Escolar Prieto Martinez, a clausura da sala para uma criança de 6 anos. Somente mulheres eram professoras que meninos e meninas chamavam de “Dona”, na ignorância dos nomes próprios. Tempos após, a escola recebeu um novo educador: era homem e negro. O chamamento dos alunos agora provocou enérgica reação: “Eu não sou Dona!”. Somente muitos dias depois me contaram que o nome dele era “Professor”.
Substituíram-se muitas folhas do calendário. Nos verdes anos da juventude, lembro as noites de junho com o calor gostoso das fogueiras tostando o pinhão. Todos os dias, e mais ainda nos feriados de Santo Antonio, São João e São Pedro apareciam os balões. Coloridos, lindos, mágicos, centenas deles cobrindo a cidade. Um domingo, no final de tarde, cheguei a contar cento e cinquenta. Balão podia contar; estrelas não, porque falavam que dava berruga na ponta do dedo. Os balões tinham formas: travesseiros, piões, mimosas, caixas, charutos. Havia até estrela, cruz e um tipo chamado zepelim, de três e até seis bocas e que exigiam muito cuidado. Era preciso acender as tochas ao mesmo tempo pois, em caso contrário, o balão perderia o equilíbrio e queimaria na certa. Todos eles tinham nomes próprios e estão grafados, sem aspas, em minha memória, assim como os nomes das raias que eu empinava, com longo fio branco ou preto, número 16. As balas Zequinha eram compradas ou conquistadas nas partidas de bola de búrigo ou de argola.
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Muito tempo mais tarde, no início dos anos setenta, eu precisava obter a imagem da casa em que nasci para que o Professor Matter ou o Theodoro de Bona pintasse um quadro. A diligência foi sendo negligentemente adiada até que, em certa manhã, ao passar no local enxerguei apenas o espaço vazio. Até hoje ando a procura de alguém que tenha uma foto antiga daquele lugar.
“Louvar o que está perdido torna querida a lembrança.”
W. Shakespeare (1564-1616)
Bem está o que bem acaba (All’s well that ends well), circa 1601 e 1608, comédia.
[…] Fonte: Blog do Dotti […]