Sob a terrível influência do poder bélico, que alimentou as doutrinas totalitárias do nazifascismo, foi estabelecida a relação de conduta entre soldados e juízes sob o império das seguintes coordenadas: “As ordens são ordens” aplicáveis aos primeiros; “antes de tudo é preciso cumprir a lei”, dirigidas aos segundos. Foi o triunfo do chamado positivismo jurídico, movimento que reduzia todos os valores e interesses ao conteúdo da norma jurídica, ou seja, ao direito posto. E foi justamente durante o período imediatamente posterior à II Grande Guerra (1939-1945) que ressurgiu na Europa o movimento do jusnaturalismo, a doutrina que procura fundamentar o Direito em bases da natureza humana que antecedem à formação do Estado. Diversos filósofos-penalistas publicaram obras que se tornaram referência obrigatória para identificar um período de leis injustas e leis nulas. Como simples referência: Gustav Radbruch, Eberhard Schmidt e Hans Welzel “Derecho injusto y derecho nulo”e Norberto Bobbio, “El problema del positivismo jurídico”.
É preciso, porém, advertir que o interesse na sanção de leis injustas e leis nulas também ocorre nos regimes democráticos de governo quando, apesar do projeto ser contrário ao interesse público, não é vetado pelo Presidente da República (CF, art. 66, § 1º)..Constitucionalidade e interesse público, portanto, são as exigências fundamentais para a validade formal e material das leis.
E a interpretação da lei, ou seja, “ revelar o pensamento que anima as suas palavras”, na definição magistral de Clovis Beviláqua, também está sujeita à oscilação entre “justa” e “injusta”, em sua aplicação pela autoridade administrativa ou judiciária? Evidentemente que sim. O endereço dessa conclusão é o art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que tem origem no Dec.-lei nº 4.657, de 04.09. 1942 e complementação pela Lei nº 12.376, de 30.12.2010. E o que diz tal dispositivo: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Nada mais certo e razoável!
Assim, se a maioria dos juízes do STF tem conhecimento personalíssimo de que a utilização exaustiva dos recursos criminais conduz à prescrição da ação penal,nenhuma dúvida remanesce de que a aplicação do princípio da não culpabilidade (CF, art., 5º, LVII- 57º) ao qual teria se ajustado a regra do art. 283 do Código de Processo Penal (uma interpretação conforme à Constituição) é manifestamente contrária ao interesse público. E a conclusão é óbvia: a Corte Maior é fomentadora da impunidade sendo a sua decisão (pela maioria de um voto) manifestamente inconstitucional pela contrariedade ao art. 5º, LXXVIII (78º) que claramente estabelece: “a todos, no âmbito judicial e administrativo são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
Em tal cenário de insegurança provocado pelo “guardião da Constituição” surge uma iniciativa que tem o objetivo de resgatar o bom senso e o relevante interesse da Justiça criminal.
No dia 19.11. 2019 foi apresentada a Proposta de Emenda Constitucional (PEC), nº 199, de 2019, pelo Deputado Alex Manente (Cidadania, SP) que estabelece o trânsito em julgado da decisão: (a) condenatória imposta pelo juiz e confirmada pelo tribunal de apelação; (b) absolutória do juiz mas reformada pelo tribunal de apelação para condenar o réu atendendo apelo do Ministério Público ou de seu assistente.
No dia seguinte a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania aprovou a admissibilidade da PEC por 50 votos favoráveis e 12 contrários. Outro disegno di legge altera a regra do art. 283 do Código de Processo Penal nos seguintes termos: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência decondenação criminal por órgão colegiado ou em virtude de prisão temporária ou preventiva”.
A PEC nº 199, de 2019 altera os arts. 102 e 105 da Constituição, transformando os recursos extraordinário e especial em ações revisionais de competência originária do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.
Segue a redação proposta para o art. 102, I – s) a ação revisional extraordinária. (…….) § 3º A ação revisional extraordinária será ajuizada contra decisão transitada em julgado, em única ou última instância, que: I– contrariar dispositivo desta Constituição; II – declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; III – julgar válida li ou ato do governo local contestado em face da Constituição; IV – julgar válida lei local contestada em face de lei federal. § 4º Na ação revisional extraordinária,o autor deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais nela discutidas, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine sua admissibilidade, somente podendo recusá-la, por ausência de repercussão geral, pelo voto de dois terços de seus membros.
Segue a redação proposta para o art. 105, renumerando-se o parágrafo único como § 1º. Art. 105 ……………… I – j) a ação revisional especial;
§ 1º A ação revisional especial será ajuizada contra decisão transitada em julgado, proferida em única ou última instância pelos Tribunais Regionais Federais, pelos Tribunais de Justiça dos Estados, ou pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, que: I – contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência; II – julgar válido ato de governo local contestado em face da lei federal; III – der à lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal.
§ 2º Na ação revisional especial, o autor deverá demonstrar o interesse geral das questões infraconstitucionais nela discutidas, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a sua admissibilidade, somente podendo recusá-la, por ausência de interesse geral, pelo voto unânime do órgão julgador, nos termos da legislação ordinária.
Art. 3º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação, assegurada a aplicação das regras de processamento e julgamento dos recursosextraordinário e especial àqueles que houverem sido interpostos antes da entrada em vigor desta Emenda.
Art. 4º Ficam revogados os incisos III, do art.102 e o inciso III do art. 105 da Constituição.
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O Congresso Nacional está demonstrando interesse na concepção e aplicação do direito justo a salvo dos aranhóis de linguagem que pretendem consagrar a aplicação equivocada da presunção de inocência como um dogma irreversível. Assim procedeu a escassa minoria do Supremo Tribunal Federal ao conceder para criminosos astutos e afortunados um tipo de indulto judiciário, uma especial modalidade de favorecimento pessoal, um direito à impunidade. Mas, um direito injusto e nulo.
“A injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todo lugar”.
MARTIN LUTHER KING JR. (1909-1968). Carta da Prisão de Birming-ham, 1963.