Modesto Carone, escritor, ensaísta, professor de Literatura e o mais qualificado tradutor em nosso país de Franz Kafka (1883-1924 ), considera O processo (Der Procezz), um dos maiores romances do século XX, que começou a ser escrito na segunda semana de 1914 mas somente publicado após a morte do autor. Pesquisadores do clássico universal constataram a influência de Dostoievski, dois anos antes, quando Kafka leu Crime e Castigo. Essa é também a conclusão de Carone ao reconhecer que pelo menos um ensaio, de linhagem psicanalítica, analisa as relações possíveis entre O processo e Crime e castigo, enfatizando, principalmente, as figuras que nos dois escritos agem “como projeções da constelação psíquica de Raskolnikov e Josef K”.
É certo que a obra literária de Kafka não surgiu “do nada”. Na base dos personagens e dos cenários por onde eles se movimentam há vestígios da experiência cotidiana nos aranhóis burocráticos de uma companhia de seguros, em acidentes de trabalho, na qual ele trabalhou muitos anos. Ele também acompanhou alguns complexos processos envolvendo crimes de repercussão em sua cidade. É provável que uma das fontes de impressões sensoriais que teriam modelado os lances surrealistas das diligências policiais e atos do tribunal na desesperada busca do infeliz Joseph K, tenha sido a demanda judicial provocada por um deputado apontado pela imprensa como informante pago da polícia secreta de Praga junto ao governo de Viena (1914). Ofendido e humilhado pela repercussão do episódio ele abriu o processo para defesa da honra. O affaire, amplamente difundido nos círculos políticos e sociais da Boêmia, revelou um comportamento tão frágil do parlamentar durante a instrução da querela que o público se convenceu de sua culpa antes mesmo da sentença. Os comentários, nos círculos burgueses da intriga, comprovaram que o veredicto, rejeitando a queixa, constituiu o declínio político e moral do litigante que mudou de nome e caiu no esquecimento. Daí a certeira constatação: ”Foi nessa ocasião, poucos meses antes de iniciar a escrever O processo que Kafka travou conhecimento com as tramas da polícia do Império, com os procedimentos sinuosos da justiça criminal do seu país e principalmente com a figura tragicômica do deputado que se viu arrastado contra a vontade a um processo cujo desfecho ele sabia de antemão ser a sua ruína”.
Uma outra frente de avaliação política da produção kafkiana admite que O processo antecipou, numa espécie de profecia, a chegada do terror nazista que anos mais tarde iria aflorar com o séquito de violências físicas e morais, a discriminação e o preconceito racial alimentados pela doutrina do nacional socialismo, manejada como combustível ideológico para construir as fundações do edifício monumental do III Reich, dando forma e corpo ao delírio do projeto de conquista mundial por mil anos.
Há várias concepções do texto sob vertentes teológicas, filosóficas, sociopolíticas e psicanalíticas em face do estado de insegurança absoluta e graves dúvidas de Joseph K, quando os responsáveis pela sua prisão não lhe dizem o motivo submetendo-o ao terror psicológico que o persegue na desesperada quanto inútil busca pelos corredores do fórum para indagar ao juiz e ao procurador quem o acusava. E, o mais importante: qual era a imputação. O absurdo daquela situação ganhou identidade vocabular com a dicionarização da palavra “kafkiano” que evoca atmosfera de pesadelo e de irracionalidade em um contexto burocrático que escapa a qualquer avaliação lógica ou racional.
Trata-se da imaginação como reduto indevassável da alma. A ficção é, ao mesmo tempo, um traço de união com o leitor para usufruir os mundos da realidade e da fantasia; do concreto e do abstrato. A magia desse equipamento de filtragem existe na Literatura, Psicologia, Filosofia, nas Artes Cênicas, nas Artes Cinemáticas e em todas as demais manifestações da imagem e do som para assumir vida própria num mural livre de régua e compasso para interpretar e sentir fatos, recriar personagens e mover coisas intangíveis. A imaginação é a via de acesso ao mundo exterior quando a palavra e a imagem passam a existir, viver, morrer e renascer com absoluta autonomia para desfilar no sonho ou no pesadelo. Esse pensar, feito de perguntas sem respostas e de cogitações sobre objeto definido ou indefinido, remete-nos ao buraco negro do desconhecido. Porém, e ao mesmo tempo, é uma generosa faculdade, domínio e posse de todos os seres humanos, conscientes e inconscientes, sem distinção de gênero e outras características, foi bem referido por Joaquim Nabuco (1849-1910): “É a imaginação, tocha divina apensa ao espírito do homem, que lhe permite mover-se nas trevas da criação”.
A obra-mestra de Franz Kafka é, sem dúvida, um grande exemplo da criação ou transformação da realidade humana pelo fenômeno da imaginação.