Para comemorar o vigésimo aniversário da Constituição Federal de 5 de outubro de 1988, o Senado Federal publicou a Revista de Informação Legislativa nº 179 (julho/setembro 2008), contendo vários textos alusivos à histórica data e ao panorama social, político e institucional que caracterizou o fim de um regime autoritário de governo (1964-1985). Eu fui um dos colaboradores daquela coletânea, com o artigo “Da ditadura militar à democracia civil: A liberdade de não ter medo”. Reproduzo algumas linhas sobre os chamados “anos de chumbo”, que foram livremente denunciados sem a guilhotina da censura e a ameaça do cárcere: “A multiplicidade de prisões como reação em cadeia, por um lado, e as manifestações de euforia, por outro, eram contrastes que revelavam cenários tão distintos quanto antagônicos. Nas ruas e nas praças, ressonavam os slogans das marchas ‘da família, com Deus pela liberdade’, enquanto nos porões e nas salas de tortura, ecoavam os sons dos gemidos e modelavam-se as máscaras dos tormentos físicos e espirituais. Foram os anos em que se restauraram em nosso país as práticas da violência institucionalizada e da degradação do sistema constitucional e legal vigentes. Eles desvendaram trechos de um direito penal do terror, com os processos utilizados contra dissidentes ideológicos e políticos e todos quantos passariam a receber o labéu de subversivo”.
Essa invocação do passado restitui a memória de minha atuação como defensor de um grande número de “subversivos”. Eram estudantes e professores universitários, jornalistas, parlamentares, advogados perseguidos e processados como responsáveis por supostos “crimes contra a Segurança Nacional”. Na verdade, nenhum dos acusados que atendi havia praticado violência, fraude, furto ou qualquer dano aos cidadãos, à comunidade e ao Estado. Sofriam restrições e perda da liberdade por suas ideias e convicções libertárias contra a ditadura militar. Marxistas ou católicos, evangelistas ou protestantes, crentes ou ateístas, religiosos ou hereges, convictos ou descrentes eram tratados com os mesmos códigos de intolerância e os mesmos instrumentos de tortura.
Os processos eram julgados por um Conselho formado por quatro oficiais militares e um juiz civil (togado), na chamada Auditoria da 5ª Região Militar, instalada em um imenso prédio na Praça Ruy Barbosa. Um deles envolvia um prefeito do interior e dois vereadores.
Encerrada a instrução criminal com o interrogatório dos acusados, depoimentos de testemunhas de acusação e de defesa e alegações escritas pelas partes, era marcado o dia da decisão. Com um discurso muito vibrante, o agente do Ministério Público afirmava que os réus eram culpados do crime de apologia do Partido Comunista. Três colegas e eu sustentávamos, vigorosamente, que nossos clientes não podiam ser punidos por “crime de opinião”. Na sequência, os julgadores e um escrivão – ninguém mais – recolheram-se a sala separada do auditório sem chance de vazamentos. Naquele tempo não havia telefone celular.
Era um final de tarde muito fria de julho. Como a nossa atuação já se havia encerrado e teríamos de esperar muito tempo até que porta da sala secreta se abrisse para o anúncio da condenação ou absolvição, fomos até um bar na rua ao lado do prédio. Eu não tirei a beca, um traje preto e longo que, para me aquecer, cobria até o pescoço. Bebericávamos sob o olhar constante de um bebum que estava sentado numa mesa próxima. Em certo momento ele levantou, fez um largo gesto de cumprimento em minha direção e, muito alegre, berrou: “Eta, padre porreta! Tomando cachaça com a gente!”.
Em resposta à pergunta de Scott Fitzgerald (1896-1940), escritor:
“Não sabe que beber é uma morte lenta?” – “Mas quem é que está com pressa?”
Robert Benchley (1889-1945), humorista. Fonte. Rónai, Paulo. Dicionário Universal Nova Fronteira de Citações, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 97.