Em reiteradas manifestações de rua, adeptos do Governo Bolsonaro, com vozes, faixas e cartazes, pregam o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal. Na sequência clamam pela aplicação do art. 142 da Constituição, que diz: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições permanente e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer deles, da lei e da ordem”.
O dispositivo consta do Título V da Constituição e trata da defesa do Estado e das instituições democráticas. O primeiro Capítulo dispõe sobre “o estado de defesa e o estado de sítio” (arts. 136 a 141). Na sequência, o Capítulo II trata das Forças Armadas, iniciando pelo art. 142, acima transcrito. A organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas, estão previstos na Lei Complementar mº 97, de 09.06.1999, que é aplicável para resolver conflito entre os Poderes da República.
Vêm à tona o Mandado de Segurança, nº 37.097, impetrado pelo Partido Democrático Trabalhista, contra o Decreto nº 27/4 do Presidente da República, nomeando Alexandre Ramagem para o cargo de Diretor-Geral da Polícia Federal. Tal ato foi liminarmente cassado pelo Ministro Alexandre do Moraes, ao argumento de que “o STF tem o dever de analisar determinada nomeação, no exercício do poder discricionário do Presidente da República, que está vinculado ao império constitucional”. O Presidente Jair Bolsonaro acolheu a decisão, revogando aquele ato e nomeando o Delegado Rolando Alexandre Souza para o relevante cargo.
A decisão do Ministro Moraes foi criticada por mestres de Direito Constitucional como Ives Gandra Martins e Lenio Streck, ao argumento de que tal precedente caracterizou mais um elo do chamado ativismo judicial e inconstitucional por ofensa ao art. 2º da Constituição: “São poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Assim, na hipótese do Presidente Bolsonaro recusar-se ao cumprimento daquela liminar, poderia, em princípio, pleitear a aplicação do art. 142 da Constituição, como garantia do Poder Executivo e da lei (no caso, a Carta Política da República).
Em mais de um de seus elogiáveis textos, o Prof. Gandra Martins esclarece que nessa hipótese “não poderiam nunca [as Forças Armadas], fora a intervenção moderadora pontual, exercer qualquer técnica política. Tal intervenção apenas diria qual a interpretação correta da lei aplicada no conflito entre Poderes, EM HAVENDO INVASÃO DE COMPETÊNCIA LEGISLATIVAS OU DE ATRIBUIÇÕES” (Diário do Comércio 03.06.2020. (Versais do original).
Em seus magníficos comentários à Carta Política de 1988, o amigo e mestre rememora as palavras de Nelson Hungria, ‘desconsolado, no golpe de Estado que derrubou Café Filho‘, reconhecendo que STF “era um arsenal de livros e, não de tanques – e por isso, nada podia fazer para garantir o governo, podendo apenas mostrar uma realidade, qual seja, a de que sem a garantia das Forças Armadas não há poderes constituídos – “.[1] As suas ponderações finais derretem qualquer ideia temente de uma reencenação dos chamados anos de chumbo (1964-1988). E insiste, com seu notório prestígio científico: “Nesse caso, as Forças Armadas são convocadas para garantir a lei e a ordem, e não para rompê-las, já que o risco de ruptura provém da ação de pessoas ou entidades preocupadas em desestabilizar o Estado”.[2]
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O título do artigo exige uma resposta objetiva: absolutamente não! Em primeiro lugar, porque as circunstâncias sociais, políticas, econômicas e institucionais de hoje não se comparam – de modo algum – com o cenário dos dias de março de 1964. O Presidente João Goulart (1919-1976) saiu de Brasília para Porto Alegre, como servidão de passagem do exílio no Uruguai. Havia o desgaste político e institucional da maior autoridade nacional, cujo afastamento era exigido pela imensa maioria da população, estimulada por correntes de parlamentares, comandantes militares e a imprensa de um modo geral.
Vivemos, agora, um novo tempo da democracia onde existe um pluralismo partidário (exagerado, até), e o respeito à dignidade da pessoa humana, à cidadania e outros valores. As manifestações populares, de vigorosas críticas aos Poderes Legislativo e Judiciário, salvo casos excepcionais, demonstram a vitalidade das redes sociais como meios de comunicação indispensáveis às liberdades constitucionais de informação, expressão e opinião que não podem ser sacrificadas por qualquer forma de intervenção do Estado.
A propósito, é oportuno invocar a experiência, a liderança e as palavras de Winston Churchill (1874-1965) em Discurso proferido na Câmara dos Comuns: “Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos” (Londres, 11.10.1947).
[1] Bastos, Celso Ribeiro – Gandra Martins, Ives. Comentários à Constituição do Brasil: (Promulgada em 5 de outubro de 1988, São Paulo: Editora Saraiva, 5ºvol., p.166-167. (Itálicos meus).
[2] Gandra Martins, Ives. Ob. cit. p. 167. (Idem).